quarta-feira, 16 de abril de 2014

Como Interpretar Sonhos? - Parte 2


Dando continuidade as postagem sobre sonhos na perspectiva analítico-comportamental, hoje iremos tratar sobre a interpretação propriamente dita e as variáveis que influenciam no sonhar. Para tanto, é interessante que se leia a postagem sobre Comportamento Verbal (Link da Postagem), pois a forma pela qual outras pessoas têm acesso aos sonhos é por meio de seus relatos. Da mesma forma, a principal forma de acesso aos sonhos no contexto clínico é por meio de seus relatos.

Por que sonhamos? 

A partir de Carlson (2002), podemos afirmar que as funções do sonhar, a nível filogenético, são:
1. Consolidação da memória;
2. Reposição bioquímica do organismo; e 
3. Desempenhou papel importante na história/sobrevivência de nossa espécie.

A nível ontogenético os comportamentos de lembrar-se e relatar os sonhos foi selecionado pela audiência social que apoiava e valorizava aqueles relatos e, por consequência, os sujeitos que sonhavam coisas interessantes. 

Desta maneira, a nível cultural, o relato de sonhos chegou a ter conotações religiosas e supostamente preditoras de eventos futuros. Assim ganharam importância em diversas culturas e fizeram (e fazem) parte do cotidiano das pessoas de diversas formas, inclusive algumas pessoas agirem em função do que sonharam. Não nos cabe, no entanto, julgarmos tais práticas. Apenas estamos relatando a sua existência e função social.
Sibila, sacerdote do templo de Apolo e oráculo
José do Egito
Sonho premonitório da mãe de
Cuchulainn sobre a morte do filho

Continuando...

Assim como diversos outros comportamentos, nosso comportamento de sonhar é multideterminado (não tem um único fator determinante), logo não temos conhecimentos de todas as variáveis que influenciam o ato de sonhar. Desta maneira, os sonhos são comportamentos inconscientes (como já vimos na seguinte postagem: link), mas que através de seus relatos e posterior interpretação podemos identificar sua função/significado.

Para interpretarmos nossos sonhos e o sonho de terceiros, é preciso nos atentarmos para algumas variáveis que podem controlar o nosso comportamento de relatar o sonho, como:
1. Sob que condições corporais ocorreu o relato;
2. A quem estava destinado o relato;
3. Em que maneira o auto-relato do sonho influencia o meu relato a terceiros; e
4. De que maneira o que foi relatado tem relações com o que tenho vivido nos momentos de vigília.

Ou seja, é basicamente uma interpretação de Comportamento Verbal, porém o acesso as contingências iniciais da cadeia comportamental não nos possibilita obter grande confiabilidade na Análise Funcional (interpretação por meio  da tríplice contingência: contexto - comportamento - consequência).

Em alguns casos, o conteúdo dos sonhos é tão ameaçador que ocorre um fenômeno conhecido como esquiva experiencial, que trata do modo pelo qual evitamos alguma condição aversiva por meio da evitação do contato com determinada contingência. Sendo que, esta evitação ocorre por meio de Comportamentos Encobertos, como pensamentos distorcidos ou o que os psicanalistas chamariam de racionalização. Tal transferência de função do estímulo aversivo para uma metáfora de valor menos aversivo em um sonho pode ser considerada como a formação de Comportamentos Simbólicos. Mas Comportamento Simbólico não diz respeito apenas a este tipo de transferência de função.

Comportamento Simbólico são as novas relações que se formam com determinados estímulos através da influência de palavras (comportamentos verbais), que são capazes de transformar estas relações sem que precisemos nos expor in vivo ao estímulo relacionado.


Por exemplo: alguém, cuja religião é muito severa quanto a conteúdo sexual/erótico, está vivendo período de privação de sexo. Digamos que sua esposa esteja viajando a trabalho e, neste contexto, ele tem um sonho com teor erótico. Mas, em vez de sonhar com a secretária que ele vê todos os dias, ele sonha com uma pintura renascentista, como "O Nascimento de Vênus". Tal sonho é menos aversivo do que sonhar com a secretária, pois é menos provável que a sua comunidade verbal o puna por sonhar com uma obra de arte. Além de que, nós mesmos podemos desempenhar o papel de nossa audiência verbal, como já foi visto na postagem sobre comportamento verbal. Assim, por meio deste comportamento simbólico (o sonho metafórico), o sujeito obteve contato em grau extremamente reduzido com o estímulo funcionalmente apetitivo sem que, depois, ele se sinta mal pelo conteúdo do sonho (evitação).

Delliti (2001), em seu artigo intitulado "Relato de Sonhos: como utilizá-los nas práticas da terapia comportamental", apresenta-nos uma série de exemplos que me parecem muito didáticos sobre como interpretar os relatos de sonhos a partir do contexto vivido pelo sujeito. 


Por exemplo: cliente era muito controladora, seguindo uma vida muito rígida e regrada. No inicio da terapia a cliente estava terminando um relacionamento amoroso por conta de ser controladora demais, além de que faria uma viagem com as amigas. Então, ela relatou ter sonhado que viajava de avião com duas amigas e no meio do voou ocorria uma turbulência, mas era ela que guiava o piloto, tomando o controle do avião e pousando-o para evitar um acidente. Percebem o quanto esta cliente era controladora? No decorrer das sessões, seus relatos vão mudando de acordo com suas experiências vividas. Em um dos últimos relatos feitos pela cliente sobre sonhos, ela contou que estava em uma festa com seus novos amigos e ela participava de uma brincadeira de pegar voou com o vento. A cada voo ela se sentia leve. Este era um novo grupo de amigos da faculdade que estava fazendo (novo contexto de vida), que eram mais relaxados e até a fizeram gazear algumas aulas. Ou seja, ela já não era mais tão controladora. Sendo assim, temos um breve exemplo de como nosso cotidiano influi nos conteúdos sonhados.

Conseguiram ver como ocorreram as transferências de função, os comportamentos simbólicos e relações entre o cotidiano e os conteúdos sonhados? Espero que o texto tenha sido compreensível, apesar de tratar de modo bem rápido e resumido de cada tópico.

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