terça-feira, 25 de novembro de 2014

RPG e Análise do Comportamento - Parte 2


Hoje tentaremos responder a questão feita no Ask. A pergunta em questão busca saber qual meu ponto de vista sobre o uso de Role Play Games envolvendo a Prática Analítico-Comportamental. Apesar da demora em responder a questão de modo preciso ao que foi perguntado, espero que seja uma leitura proveitosa.

Como foi dito na postagem anterior (link), quando jogamos RPG o principal contexto ao qual respondemos é social por meio de Comportamentos Verbais. Ora o comportamento verbal de um jogador desempenhará função de Estímulo Discriminativo, ora desempenhará função de Reforço ou Punição para determinada ação do personagem (comportamento verbal de outro jogador).

Por exemplo, em uma descrição de uma masmorra feita pelo mestre será contexto (comportamento verbal como estímulo discriminativo) para a ação que um personagem de um jogador fará (comportamento verbal). Se, no caso, a masmorra estiver totalmente no escuro, é provável que o jogador dirá que seu personagem vai acender uma tocha para iluminar o ambiente e seguirem viagem.


Por sua vez, o jogador declarar que seu personagem acenderá uma tocha (comportamento verbal) e, consequentemente, o mestre descreve mais detalhes da masmorra ou revela perigos e tesouros (comportamento verbal como consequência para o comportamento verbal de outro jogador).

Desta maneira, percebemos que a partir de nossos Comportamentos Verbais podemos fazer com que outra pessoa veja na ausência da coisa vista. No caso do RPG muitas das descrições, porém, serão sobre seres que não existem para além da ficção e, assim, termos a impressão que há uma fuga da realidade. Porém, analisando de modo behaviorista radical, não ocorre uma fuga da realidade. O que acontece é que passamos a nos comportar em função de determinado Controle de Estímulo que foi emitido por outra pessoa por meio de Comportamento Verbal. Ao nos comportarmos em função do comportamento verbal de outra pessoa, não devemos considerar que isto seja fugir da realidade, caso contrário, qualquer conversa poderia ser tratada como tal, inclusive se você imaginar neste momento uma bola azul flutuando a sua frente... Esse imaginar seria uma fuga da realidade, mas é apenas você se comportando sob controle de meu comportamento verbal!


O que podemos considerar em Análise do Comportamento como fuga da realidade são comportamentos que são emitidos de maneira incoerente aos estímulos ambientais dispostos pela comunidade verbal. Não existe uma realidade dada, uma realidade última. Aprendemos a nos relacionar de modo singular com o mundo que nos cerca por meio do controle social. Por exemplo, o sentimento saudade é uma emoção brasileira, não existe nos Estados Unidos. Nós brasileiros aprendemos a sentir saudades, estados-unidenses não. Isso não significa que não possamos comunicar a eles o que é saudade ou mesmo ensiná-los a discriminar estes respondentes emocionais por meio de reforço diferencial. Nossa comunidade verbal, assim, valida descrições verbais sobre o mundo e o que é real neste mundo. (Para deixar mais claro esta questão, indico que assistam ao filme A Vila como analogia didática sobre a questão pragmática do real: link)

No entanto, mesmo Comportamentos Delirantes não ocorrem do nada, desprendidos da realidade. Esta noção de que um delírio ocorre do nada é prática da cultura verbal mentalista, na qual se atribuía que a descrição de determinados fatos incompatíveis com as descrições estabelecidas culturalmente só poderia ter vindo de uma mente perturbada, posto a falta de tecnologias mais acuradas do comportamento humano.  Assim, Comportamento Delirante também tem um Histórico de Reforçamento e um Treino Discriminativo no qual um organismo foi exposto. Muitos comportamento delirantes tem relação com os comportamentos de ver na ausência da coisa vista e de controle verbal de comportamentos. Muitas das contingências que controlam o comportamento de delirar são estímulos encobertos, sendo apenas o organismo que se comporta sensível a estas determinadas variáveis. Como a comunidade verbal não está sob controle destes estímulos sutis, para ela, não haveria explicações factuais (dados concretos coerentes) para os comportamentos delirantes.

Assim, para a comunidade verbal, estes comportamentos seriam uma forma de fuga da realidade. Mas, como vemos, são comportamentos iguais a qualquer outro, só que estão sobre controle de estímulos sutis, os quais os demais membros da comunidade verbal não tem acesso. Bom, no RPG, no entanto, a comunidade verbal valida as relações verbais pragmáticas com este "mundo imaginário" dos jogos...


Voltando aos comportamentos delirantes, parafraseando a música dos Mutantes: Eu juro que é melhor não ser um normal se eu posso pensar que Deus sou eu... Todo comportamento tem consequências que os mantêm, seja por reforçamento negativo ou reforçamento positivo, do contrário não se manteriam. De tal maneira, comportamentos delirantes são emitidos porque produzem consequências, têm função. Os comportamentos delirantes não dependem apenas de um controle de estímulo sutil, ele tem uma função, ele tem um histórico de contingências de reforço que o selecionaram (do mesmo modo como selecionam as práticas culturais RPGísticas).

E, bom, talvez aqui nos encontremos em melhor sintonia com a pergunta. RPG nos possibilita treinar algumas Habilidades Sociais. Neste caso, as habilidades sociais podem ser treinadas tanto por Modelagem como por Modelação.


No caso da Modelagem o comportamento será construído a partir da tentativa e erro. Por exemplo, um jogador novato e tímido, no decorrer das sessões, podem ir lentamente desenvolvendo suas interpretações de maneira mais divertida e a partir da forma como ele se comporta o grupo vai dando feedback adequado. Já na Modelação, o jogador segue um modelo de comportamento que pode ser verbal ou não verbal. Por exemplo, Elfos são seres que não existem de fato, são apenas conhecidos por meio de suas descrições verbais e a partir delas podemos nos comportar de acordo como a comunidade entende que um Elfo se comportaria (do popula, elfos só existem na literatura). Outro exemplo, podemos assistir a um filme da Era Medieval e seguir o modelo de um cavaleiro, utilizando inclusive frases feitas, e na medida em que estes modelos seguidos forem ou não reforçados pela comunidade verbal, este repertório se manterá no contexto do jogo.


E, melhor ainda, tanto os Repertórios Comportamentais treinados, seja por modelagem ou modelação, podem ser emitidos em outros contexto e funcionarem de maneira adequada. É exatamente neste ponto que há maior proximidade entre uma técnica comportamental específica: Ensaio Comportamental. Em resumo, o Ensaio Comportamental diz respeito a seleção de contextos interpessoais que um cliente deseja aprender ou melhorar e a audiência não-punitiva do terapeuta ajudará o cliente a ter um feedback adequado do seu repertório comportamental e, futuramente, estes comportamentos são utilizado fora do setting terapêutico.


De maneira análoga, as sessões de RPG poderiam funcionar como um ambiente social menos aversivo e mais reforçador do que em outros contextos sociais, possibilitando a emissão e manutenção de novos repertórios comportamentais e, após seu estabelecimento de maneira consistente, ser Generalizado para demais contextos sociais. RPG também pode servir para instalar comportamentos educacionais ou relevantes para educação, promover Cultura de Paz, etc. A utilização de RPG na prática analítico-comportamental dependerá do seu contexto e objetivos relevantes e é importante avaliar se não existiriam outras estratégias mais eficazes do que adaptar RPG para atuação profissional.


Agora, para não parecer que fugir da realidade seja algo ruim, já que falamos um pouco sobre comportamentos delirantes. Às vezes, assim como na literatura, filmes e revistas em quadrinhos, o RPG pode servir como um ambiente menos aversivo do que os demais a que se está exposto diariamente. De tal maneira, o RPG se torna uma saída, um meio pelo qual o organismo obtêm reforços naturais e arbitrários que não seriam possíveis em outros ambientes. Por este motivo, algumas boas atividades lúdicas bem planejadas em ambientes hospitalares possibilitam melhorias em crianças internadas. Isto porque modificamos o ambiente a que elas estão A todo momento elas estão expostas a um ambiente aversivo (monótono, cheio de protocolos, sem televisão, com redução de mobilidade física, em caso de uso de soros ou outros recursos médicos, etc.), seu próprio organismo emite respostas desagradáveis (dores, por exemplo), e a possibilidade de gerar reforçadores por meio de jogos interpretativos/lúdicos poderá promover um ambiente mais saudável e acolhedor para estas crianças acamadas. É por este motivo que ações como as do Patch Adams e os Doutores da Alegria serem bem sucedidas. (Futuramente, conversaremos sobre esquiva experiencial)


Ou seja, fugir da realidade não é algo bom nem ruim. Assim como qualquer comportamento, fugir da realidade será bom ou ruim dependendo do contexto em que está inserida e que consequências trazem aos sujeitos ou a seus pares.

Sendo assim, e mais uma vez parafraseando os Mutantes: Mas louco é quem me diz que não é Feliz!

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