segunda-feira, 19 de março de 2018

O Poder, Os Privilégios, Os Grupos e a Luta!



O texto a seguir é emocional. Diz respeito ao silêncio de uns diante das frases abomináveis de outros. Diz respeito também dos gritos, que tantos tentam silenciar. Trata-se de um tema complexo e frágil. Trata-se de como discursos (que podem ser mal ou bem intencionados) violentam minorias.

Como beber dessa bebida amarga/ Tragar a dor, engolir a labuta/ Mesmo calada a boca, resta o peito/ Silêncio na cidade não se escuta/ De que me vale ser filho da santa/ Melhor seria ser filho da outra/ Outra realidade menos morta/ Tanta mentira, tanta força bruta” (Cálice, Chico Buarque, 1978)

[O texto é voltado para um determinado público, nós que de algum modo temos privilégios e por vezes estamos insensíveis a determinadas contingências]

Dizem os ditos populares que é a morte que iguala os homens e mulheres, dizem. No entanto, é perceptível como um evento que deveria sensibilizar e unir grupos acaba por gerar contextos de disputa. Trato assim da infeliz morte da vereadora Marielle Franco cujas classes sociais que representavam eram: mulher, negra, lésbica, feminista, militante, de esquerda e mãe-solo.


Não vou entrar na discussão profunda sobre estes lugares, os quais não pertenço. Mas cabe a nós, psicólogos e psicólogas em formação ou não, atentarmos para o fato de que há uma engenharia social voltada para o silenciamento das vozes que ganharam destaque ao longo dos últimos anos. São vozes a muito marginalizadas pela história brasileira, são vozes que apresentam risco para o estado hegemônico. São vozes contrassensuais.

Vamos às condições:
·        Determinados grupos entristeceram e se solidarizaram com a morte da vereadora;
·        Determinados grupos atacam os grupos e pessoas que se solidarizam com a morte da vereadora; e
·        Determinados grupos tratam o evento como neutro, sem significância, o naturalizam.



Se pararmos para avaliar e verificar que grupos e pessoas se solidarizaram com a morte da vereadora, perceberemos que terão práticas sociais em comum, participam da mesma comunidade verbal e agem em função de instruções que são classificadas como “de esquerda”. Imaginemos que somos estudantes secundaristas e há duas situações: (1) um estudante da nossa escola sofre morte violenta próximo à escola e (2) um estudante que nunca vimos, de um bairro muito distante do nosso, sofre morte violenta perto da sua escola. Agora, a qual das duas situações te parecerá de maior urgência para sua segurança? Sigamos.

O segundo grupo, que não partilha das mesmas contingências sociais, talvez nunca tenham vivido contextos similares a depender da estratificação social e geográfica que veio. Este grupo não se identifica com os “de esquerda” e inclusive nutrem sentimentos negativos quanto a estes. Suponhamos que frases a seguir sejam comuns para este grupo, como: “Bolsa Família só sustenta preguiçoso”, “Ele poderia ter escolhido outro caminho”, “Isso ocorreu porque andava sozinha(o) na rua nesta hora”, etc. Para aqueles que não partilham das condições sociais dos beneficiários, parece preguiça quando temos um crescente número de desempregados. Para aqueles que a família possibilitou o privilégio de escolha aos filhos, devido o acesso a melhores escolas, comida, etc., parece fácil acreditar que todos têm mesmas condições de formação social. Para aqueles que culpam a vítima, talvez nunca tenham sido assaltados e tenham o privilégio de trabalhar em horários convencionais. Isso tudo não justifica a insensibilidade à condição de sofrimento do outro, mas explica.


É comum que aqueles do primeiro grupo “de esquerda” sofram devido às condições sociais mantidas pelos que detêm o poder (como políticos eleitos, agrônomos, figuras religiosas, etc./ aqueles que têm condições de os reforçadores e aplicar punições). Enquanto isso, os do segundo grupo sofram com o avanço das políticas de minorias e perca privilégios (reforçadores) como ter uma empregada doméstica sem direitos trabalhistas, diminuir as chances de seu filho entrar em uma universidade pública devido às cotas ou torne mais fácil de sofrer punições caso assedie alguém (seja sexualmente ou moralmente).

Já o terceiro grupo, pode não compartilhar das contingências que modelaram o comportamento de militância do primeiro grupo e foram socializados de modo a concordarem com comunidade verbal daqueles que detêm o poder (instruções verbais familiares, escola, trabalho, etc.). Por exemplo: por não sermos homens, não compreendermos o medo das mulheres andarem sós na rua (apesar de dizermos temer assalto, mas não tememos por violarem nossos corpos); por não sermos negros, não compreendermos o olhar de seguranças nos corredores dos shoppings (apesar de que talvez já tenha ocorrido, não é comum); por sermos heterossexuais, não tivemos que apresentar conjugues como “amigos”; etc. Há uma série de situações que apenas aqueles que às vivenciam tem condições de compreender e não podemos ser cínicos de dizer que há relações sociais simétricas. O perigo maior reside na concordância com instruções sociais que dificultam o acesso de determinados grupos aos reforçadores com o discurso como o de que nascemos iguais, então todos tem iguais condições. Estas regras não são neutras, como gostam de crer. São regras que emergem das relações sociais, são modeladas e mantidas por grupos sociais privilegiados. É fácil dizer que tem que ensinar a pescar, quando não se é beneficiário desta política social, mas talvez receba aposentadoria do tio-avô ex-militar. Ou seja, é um grupo concordante com a manutenção dos privilégios que temem perder, pois o primeiro grupo passa a se beneficiar de determinadas políticas.


Em resumo: todos os três grupos são passíveis de perca de reforçadores, mas há apenas uma camada social que não sofre nada e, ainda, se beneficia das disputas entre os grupos. Sendo que é importante frisar que há grupos menos privilegiados que outros e não há simetria na disputa política formal e informal, pois há regras e instruções bem estabelecidas que naturalizam determinados fenômenos sociais ou os ridiculariza.

Voltando, o perigo maior é o comportamento verbal. Há pessoas que dizem que se trata apenas de debater ideias, ou ideias diferentes e que é preciso de pluralidade ideológica. Percebam que debater ideias, ouvir ideias diferentes (inclusive ofensivas) e dar mais espaço a quem já tem (usa dos mesmos discursos já estabelecidos pela comunidade verbal dominante) não muda em nada nas condições físicas que os grupos dominados vivem. Discutir ideias não melhora saúde, segurança e educação. Discutir ideias apenas fornece contexto para receber elogios de pares em grupos acadêmicos e por vezes destaque social nas redes sociais. Talvez, o que diferencia as ideias “de esquerda” para as demais é que a primeira apresenta risco de mudança das condições físicas que mantêm o controle de grande parte do comportamento da população enquanto as demais ideias apenas apresentam formas brandas de manter o poder dos dominantes agradando pequenas parcelas dos dominados (ou seja, não terá impacto nas condições físicas que mantêm desigualdade).



Sendo assim, finalizo dizendo que aqueles que tentam silenciar estas vozes, aqueles que são concordantes com o silêncio, aqueles que não se importam, são aqueles que se beneficiam das condições sociais de desigualdade. Uma mulher negra, lésbica, militante, de esquerda e mãe-solto não morreu porque apenas discursava, morreu porque trazia consigo possibilidades reais de perigo a quem está no poder. Não era apenas um discurso, é Luta!

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